No coração dos Bálcãs, um capítulo sombrio da história recente da Europa está sendo reaberto, revelando uma crueldade que desafia a compreensão humana: o "Safári Humano" de Sarajevo. Em meio ao cerco mais longo de uma capital na história moderna, a cidade da Bósnia se tornou, para alguns estrangeiros, um macabro destino de "turismo de guerra" onde se pagava para atirar em civis.
O que já era de conhecimento local e comentado como uma quase lenda urbana, se tornou uma investigação criminal que ganhou as manchetes globais. O Ministério Público de Milão, na Itália, apura denúncias de que, durante a Guerra da Bósnia (1992-1996), cidadãos de alguns países, inclusive Itália, viajavam até as colinas que cercavam Sarajevo. Entre eles estavam políticos, empresários e médicos de alta reputação.
O propósito da viagem: pagar um valor adicional, que poderia chegar a R$ 600 mil, para atirar e matar civis desarmados, como se estivessem participando de uma caçada esportiva.
O cerco e a indiferença do mal
Sarajevo estava sob o jugo de um cerco brutal de quase quatro anos, imposto por forças sérvio-bósnias. Posicionados nas montanhas, franco-atiradores e artilharia disparavam indiscriminadamente sobre a cidade. O grito "Pazite, snajper!" (Atenção, sniper!) era parte do cotidiano, matando mais de 11.000 civis, incluindo centenas de crianças.
É nesse cenário de terror que a denúncia sobre o "Safári Humano" se insere. O dinheiro, segundo o que se apurou, era entregue a intermediários de milícias sérvias. Homens de 40 a 50 anos, com paixão por armas e em busca de uma adrenalina sádica, os "turistas de guerra", eram posicionados, recebiam armas de precisão e miravam em pessoas indefesas que se arriscavam a sair de casa em busca de água, comida ou medicamentos.
Segundo o que sugere a investigação e testemunhas, alguns desses indivíduos supostamente voavam até Belgrado na sexta-feira, passavam o fim de semana atirando e voltavam às suas vidas "respeitáveis" na segunda-feira. A crueldade era tamanha que, em alguns casos, havia uma "tabela de preços" que diferenciava os alvos: homens, mulheres e crianças. Os idosos não tinham valor e poderiam ser alvejados gratuitamente.
O inquérito e a busca por justiça
O caso veio à tona graças à denúncia formal apresentada pelo jornalista e escritor italiano Ezio Gavazzeni, que afirma ter reunido provas consistentes ao longo dos anos. A Procuradoria de Milão está investigando os suspeitos por homicídio doloso agravado por crueldade e motivos torpes.
A investigação não só lança luz sobre um crime de guerra horrível, mas também expõe a "indiferença do mal", onde matar deixou de ter motivação ideológica para se tornar um "impulso lúdico". Trazendo essa discussão para Arcos, a história de Sarajevo serve como um alerta universal: por mais distantes que pareçam, os abismos da crueldade humana fazem parte do nosso mundo e exigem vigilância e condenação constantes. Fatos como esses devem ser lembrados e divulgados pelo mundo todo para não serem repetidos.
A justiça tenta, trinta anos depois, responsabilizar aqueles que transformaram o sofrimento alheio em uma perversa forma de entretenimento.
Fontes de pesquisa: La Repubblica, VEJA, Estadão, Poder360, DN, Arquivos do Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia (TPIJ).